Ainda outro dia, na sonolência 
De escuras árvores, eu sozinho, 
Ouvi batendo, como em cadência, 
Um tique, um taque, bem de mansinho... 
Fiquei zangado, fechei a cara – 
Mas afinal me deixei levar 
E igual a um poeta, que nem ouvi falar. 
E vendo o verso cair, cadente, 
Sílabas, upa, saltando fora, 
Tive que rir, rir, de repente, 
E ri por um bom quarto de hora 
Tu, um poeta? Tu, um poeta? 
Tua cabeça está assim tão mal? 
– "Sim, meu senhor, sois um poeta", 
E dá de ombros o pica-pau. 
Por quem espero aqui nesta moita? 
A quem espreito como um ladrão? 
Um dito? Imagem? Mas, psiu! Afoita 
Salta à garupa rima e refrão. 
Algo rasteja? Ou pula? Já o espeta 
Em verso o poeta, justo e por igual. 
– "Sim, meu senhor, sois um poeta", 
E dá de ombros o pica-pau. 
Rimas, penso eu, serão como dardos? 
Que reboliços, saltos e sustos, 
Se o dardo agudo vai acertar dos 
Pobres lagartos os pontos justos. 
Ai, ele morre à ponta da seta 
Ou cambaleia, o ébrio animal! 
– "Sim, meu senhor, sois um poeta", 
E dá de ombros o pica-pau. 
vesgo versinho, tão apressado, 
Bêbada corre cada palavrinha! 
Até que tudo, tiquetaqueado, 
Cai na corrente, linha após linha. 
Existe laia tão cruel e abjeta 
Que isto ainda – alegra? O poeta – é mau? 
– "Sim, meu senhor, sois um poeta", 
E dá de ombros o pica-pau. 
Tu zombas, ave? Queres brincar? 
Se está tão mal minha cabeça, 
Meu coração pior há de estar? 
Ai de ti, que minha raiva cresça! – 
Mas trança rimas, sempre – o poeta, 
Na raiva mesmo sempre certo e mau. 
– "Sim, meu senhor, sois um poeta", 
E dá de ombros o pica-pau. 
Das canções do Príncipe Livrepássaro, poemas de 1882-1884, publicados em apêndice à Gaia Ciência, na edição de 1886. 
Coleção "Os Pensadores" - Nietzsche - Vol. II - Pg.181/182
sexta-feira, 23 de outubro de 2009
Vocação de Poeta (para quem não conhece o lado poético de Nietzsche)
Assinar:
Postar comentários (Atom)
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 
   
 



Nenhum comentário:
Postar um comentário