sábado, 17 de maio de 2008

Assim Falou Zaratustra

"Quem quer aprender a voar, precisa primeiro aprender a ficar de pé e a andar e a subir e dançar: a arte de voar não se aprende voando!

Aquele que ensinar os homens a voar afastará todos os limites, batizará a terra de novo como A Leve.
Quem quer se tornar leve e se transformar em pássaro deve se amar.
O homem é uma corda estendida entre a besta e o Super Homem - uma corda sobre o abismo.É perigoso passar de um lado ao outro, perigoso ficar no caminho, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar.
O que há de grande no homem é que ele é uma ponte e não um fim: o que se pode amar no homem é que ele é uma passagem e uma queda.
Por trás dos teus pensamentos e teus sentimentos, irmão, há um soberano possante e um sábio desconhecido. Ele mora no teu corpo, é teu corpo.
Há mais razão no teu corpo que na tua melhor sabedoria.
Há sempre um pouco de loucura no amor.
Mas há sempre um pouco de razão na loucura. E mesmo eu, que estou voltado para a vida, acho que as borboletas, as bolhas de sabão e o que se assemelha a elas entre os homens são o que melhor conhece a felicidade.
Ver voar essas alminhas leves, loucas, graciosas e móveis - isso dá a Zaratustra vontade de chorar e cantar.Eu não poderia acreditar num deus que não soubesse dançar.
Agora sou leve, agora vôo, agora me vejo abaixo de mim mesmo, agora um deus dança através de mim. Estou agora diante do meu último cume.
Tenho diante de mim meu caminho mais duro. Começo minha corrida mais solitária.Acima da tua cabeça e além do teu coração. Agora a coisa mais doce em ti deve se tornar a mais dura.Precisas subir andando sobre ti. Mais alto, mais alto até que as estrelas fiquem lá embaixo.Céu acima de mim, céu puro. Profundo. Abismo de luz. A te contemplar tremo de desejos divinos. Saltar na tua altura - eis o meu abismo. Ensconder-me na tua pureza, eis minha inocência.Todo a minha vontade é só voar, voar para entrar em ti!
O belo corpo vitorioso em torno do qual tudo se transforma em espelho.
O corpo ágil, o dançarino cujo símbolo é alma feliz consigo mesma. Toda alegria quer a eternidade, a profunda, profunda eternidade. Assim fala a sabedoria do pássaro: Não há alto nem baixo. Lança-te para todos os lados, para frente, para trás, homem leve.
Não fala mais.
Canta."

Nietzsche - in Assim Falou Zaratustra


Coleção "Os Pensadores" - Nietzsche - Vol. I - Editora Nova Fronteira

O carrasco de si mesmo

A J.G.F.

Vou te bater sem me irritar,
Sem ódio, como um açougueiro,
Como Moisés contra o outeiro!
E arrancarei do teu olhar,

Para irrigar os meus saaras,
As águas que brotam da dor.
Esperançoso, o meu amor
Irá nas lágrimas amaras

Para alto mar como um vapor
E o teu soluçar adorado
Meu coração embriagado
Fará bater como um tambor!

Não serei eu um falso acorde
No som do divino coral,
Culpa da ironia fatal
Que me arrebata e que me morde?

Ela distorce a minha voz!
É meu sangue, negro veneno!
E eu sou o espelho obsceno
Onde ela se enxerga, atroz!

Sou a espada e o degolado!
Sou a ferida e o punhal!
Sou a vítima, sou o mal,
Torturador e torturado!

Vampiro do meu coração,
Sou um dos grandes rejeitados
Ao riso eterno condenados
E que nunca mais sorrirão!

Charles Baudelaire - in Flores do Mal

sábado, 3 de maio de 2008

Mantra para uma submissa








Eu não quero ser o líder. Eu me recuso a ser o líder. Eu quero viver obscura e ricamente em minha feminilidade. Eu quero um homem que esteja acima de mim, sempre acima de mim. Seu querer, seu prazer, seu desejo, sua vida, seu trabalho, sua sexualidade, o critério, o comando, meu pivô. Eu não me importo em trabalhar, tendo minha própria ocupação intelectual, artística; mas como uma mulher, oh Deus, como uma mulher eu quero ser dominada. Eu não ligo que digam para que eu caminhe com meus próprios pés, para não depender em tudo que eu sou capaz de fazer. Mas eu sou perseguida, fodida, possuída pela vontade de um homem em seu tempo, seu comando.


Anais nin

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Até cortar os defeitos pode ser perigoso...

1947, Berna - Suíça

“Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual o defeito que sustenta nosso edifício inteiro... Há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma em boi. Assim fiquei eu... Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também a minha força. Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você, sobretudo o que imagina que é ruim em você - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse seu único meio de viver. Juro por Deus que, se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia ia ser punida e iria para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não é ser punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo o que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu saber. Ver o que pode suceder quando se pactua com a comodidade da alma”

Clarice Lispector -
in Correspondências

100 Escovadas Antes de Ir para a Cama - Trecho do livro









Tem dias que não sei se devo parar de respirar definitivamente ou se fico em
apnéia durante todo o tempo que me resta. Dias em que debaixo das cobertas respiro e
engulo minhas lágrimas sentindo o sabor delas na língua. Levanto de uma cama
desarrumada com os cabelos despenteados e com a pele violentada. Nua, diante de um
espelho, observo meu corpo. Vejo uma lágrima escorrendo dos olhos pelas faces,
enxugo com um dedo e arranho um pouco a bochecha com a unha. Passo as mãos nos
cabelos, puxo para trás, faço uma careta só para parecer simpática e rir de mim mesma:
mas não consigo, quero chorar, quero me punir. Vou até a primeira gaveta da mesinha.
Primeiro examino tudo que tem dentro, depois separo com cuidado o que quero vestir.
Boto as roupas dobradas em cima da cama e ponho o espelho bem em frente do lugar
onde estou. Observo novamente o meu corpo. Os músculos ainda estão tensos, a pele,
no entanto, é macia e lisa, branca e imaculada como a de uma menina. E uma menina é
o que sou. Sento na beira da cama, enfio as meias esticando a ponta do pé e fazendo o
véu fino deslizar até que a borda rendada chegue à coxa, apertando um pouco. Depois é
a vez do corpete de seda preta com cordões e fitinhas. Aperta meu busto e afina a
cintura que já é bem fina, evidenciando ainda mais os quadris, muito bem providos,
redondos e macios demais para evitar que os homens desagüem ali as suas bestialidades.
Os seios ainda são pequenos: duros, brancos, redondos, cabem nas mãos e podem
esquentá-las com seu calor. O corpete é estreito, os seios ficam comprimidos, apertados
um contra o outro. Ainda não é chegado o tempo de admirar-me. Calço as botas de salto
agulha, enfio o pé até o tornozelo delicado e sinto que meu metro e sessenta ganha
repentinamente dez centímetros. Vou até o banheiro, pego o batom vermelho e banho
meus lábios suculentos e macios; depois aumento os cílios com rímel, penteio os
cabelos longos e lisos e vaporizo três vezes o perfume que estava em cima do espelho.
Volto para o quarto. Lá verei a pessoa que me faz vibrar a alma e o corpo com força.
Examino-me encantada; uma luz especial contorna meu corpo, e meus cabelos caídos
suavemente nos ombros convidam-me a acariciá-los. A mão cai vagarosamente dos
cabelos, quase sem que eu perceba, para o pescoço, acaricia a pele delicada, e dois
dedos envolvem sua circunferência apertando de leve. Começo a ouvir o som do prazer,
ainda quase imperceptível. A mão desce um pouco mais, começa a acariciar o peito liso.
A menina vestida de mulher que está diante de mim tem os olhos acesos e ávidos (de
quê? de sexo? de amor? de vida verdadeira?). A menina só é senhora de si mesma. Seus
dedos emaranham-se entre os pêlos de seu sexo e o calor lhe provoca um
estremecimento da cabeça. Mil sensações me invadem.
- Você é minha - sussurro, e logo a excitação toma posse do meu desejo.
Mordo os lábios com os dentes perfeitos e brancos, os cabelos descompostos
fazem minhas costas suarem, pequenas gotas enchem meu corpo de pérolas.
Ofegante, os suspiros aumentam... Fecho os olhos, meu corpo tem espasmos por
todo lado, minha mente está livre e voa. Os joelhos cedem, a respiração é curta e a
língua percorre os lábios, cansada. Abro os olhos: sorrio para a menina. Aproximo-me
do espelho e lhe ofereço um beijo longo e intenso, minha respiração embaça o vidro.
Sinto-me sozinha, abandonada. Sinto-me como um planeta em cuja órbita giram
três estrelas diversas: Letizia, Fabrizio e o professor. Três estrelas que me fazem
companhia em pensamento, mas não na realidade.


100 Escovadas Antes de Ir para a Cama - Melissa Panarello