sexta-feira, 26 de outubro de 2007

A ÉTICA TORTURADA: SOBRE SADE

O que desejo, neste ensaio, é propor uma reflexão sobre a ética sadeana – ou, mais propriamente, sobre a crítica aos fundamentos da ética que o Marquês realizou em suas obras. Pretendo mostrar que há, em Sade, uma distinção fundamental entre duas éticas: de um lado, a que é apresentada em sua literatura; de outro, a que percebemos a partir de seus dados biográficos; e sustentar que a primeira é apenas uma das manifestações de tal reflexão _ mas que, longe de sustentar a ética de seus personagens, Sade os utilizava para representar um problema filosófico muito mais fundamental.

É verdade que é muito difícil, quando fala-se em Sade, saber de que Sade se fala. Quero dizer que, em seus livros, encontramos uma profusão de idéias em momento algum sistemática, e dificilmente passíveis de uma unificação; ainda que haja uma série de questões que atravessam uniformemente toda a obra e a biografia sadeana, pontos que poderíamos considerar como consistentes e indiscutíveis _ por exemplo, o materialismo de Sade, ou sua crítica à oposição entre virtudes e vícios _ , há outros nos quais tal uniformidade não se apresenta. E a ética, a meu ver, é um deles. Se analisarmos a ética que encontramos na maioria dos livros de Sade à luz de seus dados biográficos, percebemos que grande parte destes levanta problemas no tocante àquela. Nos livros de Sade encontramos assassinatos em nome do prazer, mas porque não sabemos de nenhum que ele tenha cometido _ e mesmo de sua reprovação relativamente à idéia de fazê-lo? Se observarmos os relatos que descrevem Sade como o monstro que a lenda criou, verificaremos que são, invariavelmente, fantasiosos e inverossímeis. É por isso que encontramos, na famosa descrição de La Bretonne, um Sade dissecador de corpos vivos, trabalhando em sua sala acompanhado de um corpo humano imerso em álcool; ou, na de Bury, um Sade entretido em queimar uma mulher viva.

É preciso, todavia, saber de que Sade se fala _ se daquele que encontramos nestas narrativas, ou daquele que percebemos em outros relatos, ou mesmo em suas próprias cartas. Observe-se, por exemplo, o caso de Rose Keller, ocorrido em 1768. Enquanto Rose _ certamente muito interessada na indenização que receberia caso o julgamento lhe fosse favorável _ recheou seu relato com violentas pauladas, facadas e queimaduras, Sade afirmou não ter usado mais que uma palmatória, e aplicado-lhe apenas "três ou quatro séries de chicotadas". E o depoimento do médico que examinou o corpo da mulher, por sua vez, assegurou que não havia nela nenhuma escoriação que ultrapassasse a epiderme, nenhum sinal de pauladas, e apenas marcas de pingos de cera que não poderiam ser caracterizados como queimaduras...

Mas esta não é a única evidência, e acredito que a mais forte esteja na chamada "grande carta", com sua célebre declaração:

"Sim, sou libertino, confesso; eu concebi tudo o que se pode conceber neste gênero, mas seguramente não fiz tudo o que concebi e certamente nunca farei. Sou um libertino, mas não sou nem um criminoso, nem um assassino."

Como poderíamos, portanto, afirmar que Sade realmente propõe a ética que encontramos em seus livros? Sade não só não fazia grande parte do que seus personagens defendiam, como também censurava as atitudes destes. Em 1780, condenou um carcereiro _ chamado por ele de "corno", "vilão" e "rabujento" _ precisamente por este encontrar prazer nos sofrimentos dos prisioneiros que maltratava; e em inúmeras ocasiões manifestou por sua esposa uma afeição que certamente jamais encontraríamos em seus personagens. Mas, sendo este o caso, como compreender que Sade tenha escrito tantos densos discursos filosóficos em suas obras, se não tencionava colocá-los em prática?

A resposta, a meu ver, pode ser encontrada na muito mais profunda questão filosófica dos fundamentos da ética. Longe de promover uma "anarquia do desejo", como frequentemente se afirma, penso que Sade tencionava apontar para um conflito fundamental, no homem, entre o desejo (ilimitado) e a norma (limitadora).

Ao contrário do que comumente se afirma, Sade não só sabe da existência deste conflito, como também sabe que, sem a norma, a própria idéia de uma sociedade que resguarde a liberdade _ que ele tanto defendeu _ torna-se impossível. No entanto, o que ele se recusa a fazer é escamotear esta oposição entre o desejo e a norma em nome de alguma saída "fácil". Isso é muito bem ilustrado pela contraposição que observamos entre a estrutura social do castelo dos libertinos dOs 120 Dias de Sodoma e aquela defendida por Zamé, da ilha de Tamoé; Sade toma cada um dos pratos daquela balança e estica a corda até seu máximo, levando cada um dos lados até as últimas consequências, e o resultado é gritante. A ilha de Tamoé - onde Zamé sequer coloca-se como governante, mas como "legislador e amigo", e onde a estrutura política tem como único objetivo a felicidade de seus habitantes -, em nome de uma igualdade absoluta de seus cidadãos, acaba simplesmente suprimindo totalmente o indivíduo. O caminho que leva até aquela igualdade, demonstrado por Zamé de forma extraordinariamente lúcida e filosófica, vai gradualmente tornando obrigatórias a educação e o trabalho em prol da sociedade, e assegura uma distrubuição de bens impecável; mas, por outro lado, proíbe a homossexualidade "em nome do Estado", filtra todos os canais de informação e introduz uma censura extremamente rígida no campo das artes. A supremacia do estado sobre o indivíduo chega a seu ápice com a obrigatoriedade de que todos os cidadãos usem as mesmas roupas e morem em casas idênticas.

Mas o outro prato da balança, aquele sobre o qual está o "puro desejo", não é mais promissor. A questão é que, sendo os desejos ilimitados, apenas deuses poderiam reinar num mundo onde apenas eles existissem - e é exatamente este o mundo que encontramos no castelo dOs 120 Dias. O Duque de Blangis, Durcet, Curval e o Bispo são os soberanos de um castelo isolado da sociedade, e são o panteão divino que reina absoluto sobre seus súditos - ou seja, aqueles que são carregados para dentro do castelo. Unidos por seus casamentos com as filhas uns dos outros, cada um deles tem quatro esposas; e, não havendo sobre eles nenhuma outra autoridade, determinam não só todas as leis e costumes dentro do castelo, como também controlam cada momento da vida de seus súditos, inclusive aquele de suas mortes. O saldo desta orgia divina encontramos ao fim do texto:

Massacrados antes de 1° de março, no curso das orgias: 10 Massacrados depois de 1° de março: 20 Sobreviventes que regressaram [a Paris] : 16

A lição sadeana, aqui , é bastante clara e idêntica àquela que mais tarde será declarada também por Dostoievski: Se Deus está morto, tudo é permitido.

Ora, o sustentáculo da lei é o direito divino: apenas um Deus - e, conseqüentemente, uma criação (seja esta voluntarista ou emanantista) - pode ser o fundamento de uma ética e de uma moral. Daí a aguda observação de Sade acerca da Revolução Francesa: guilhotinar o Rei, era, simultaneamente, destruir a garantia divina do direito. Morto o rei, é preciso arranjar alguma outra garantia de moralidade, que é preciso tomar como um pressuposto indiscutível. Ora, se eu não acredito em mandamentos revelados por algum Deus, por que eu não posso cometer um crime - por exemplo, sair e matar agora uma pessoa? Eis armado o beco sem saída: pode-se responder que isso seria afetar a liberdade de um outro, mas então - supondo que eu tenha uma definição do que é esta "liberdade" -, por quê eu tenho de respeitá-la? "Porque poderiam fazer o mesmo com você"; que seja, mas e se eu não vir nenhum problema nisso? (até porque dizer que "poderiam fazer" não quer dizer que alguém vá fazer). E esses são apenas uns poucos exemplos; qualquer um que comece a fazer perguntas desse tipo à ética encontrará uma infinidade de outras.

A posição filosófica de Sade, com relação à contraposição "lei-desejo", é a de não adotar uma saída fácil, e o que eu quero dizer com isso é que ele não admite um acordo entre ambos: a lei, para Sade, sempre consiste em um controle do desejo, que é... incontrolável! Mas, por outro lado, apenas as leis podem sustentar a sociedade, mesmo negando uma dimensão essencial do homem. E como resolve-se esta situação? A resposta sadeana é: não se resolve.

Sade era um libertino, não um criminoso. Ele mesmo precisa adequar o seu pensamento à sua vida _ excluindo, por exemplo, os assassinatos, tão comuns nas orgias se seus livros. Se o que adjetivamos de "sádico" é o que se enquadra na filosofia defendida pelos personagens de seus livros, não só Sade não era sádico como também a grande maioria dos sadomasoquistas não o é, já que, neste caso, o que é propriamente sádico não admite safewords nem qualquer tipo de limite; um sadeano legítimo provavelmente seria algo próximo a um Arthur Shawcross ou a um Marc Dutroux, incluindo aí todo o seu curriculum de sequestros, mortes, assassinatos, etc. Aqueles limites observados pelo próprio Sade - que não dormia com crianças e não matou ninguém, ao contrário de seus personagens - marcam a área da libertinagem. Deste modo, seguindo a terminologia que aqui estabelecemos, poderíamos afirmar que Sade foi um libertino, mas nunca foi um sádico.

Por outro lado, isso de modo algum pode desqualificar seu pensamento. Se destacamos devidamente sua obra literária na totalidade de seu pensamento, observamos que seus personagens não representam ideais de uma atitude a ser por nós adotada, mas representações de uma ameaça em potencial a todo ser humano: o risco da emergência de um desejo incontrolável. Os mais sádicos personagens sadeanos não matam por crueldade ou frieza, mas porque são totalmente dominados por esses desejos – que, em todas as suas facetas, não só habitam o espírito de cada ser humano, como podem a qualquer momento tomar o controle. Ora, quando isto acontece, a questão do limite sequer se coloca, simplesmente porque o desejo atua ali onde a razão já não está presente; e aqui não se trata de pessoas usando alucinógenos ou que estão voluntariamente em "estados mentais alterados", mas de pessoas "comuns" que, simplesmente, são subitamente arrebatadas por desejos que não podem controlar. São, por assim dizer, pessoas "normais", mas que acabam implodindo a própria "normalidade": são demasiado humanos, mas tão humanos que acabam se tranformando em "monstros humanos". E é por isso que, consoante Bataille, "para quem quiser ir ao fundo do que significa o homem, a leitura de Sade é não apenas recomendável, mas necessária". E é precisamente por isso que Sade foi transformado, pelas lendas, no maior de todos os demônios: caracterizado desta forma, como algo que pouco ou nada tem de humano, ele é mantido à distância; e podemos observá-lo como uma criatura que, entretida em queimar mulheres ou dissecar homens, nada tem em comum conosco. Esquecemo-nos, todavia, que foi destas mesmas lendas que seus contemporâneos serviram-se para condená-lo. Lembremo-nos de sua própria declaração: "Não foi o meu modo de pensar que causou a minha desgraça. Foi o modo de pensar dos outros."

Henrique Marques Samyn

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